sábado, 29 de outubro de 2022

 

A Promessa
 

- Então, está prepara pra ouvir?

Foi assim que nossa conversa começou. O sotaque do Português distante do meu comprometia um pouco o entendimento. Foram necessárias pausas para repetir algumas falas. Na verdade, acredito que a grande dificuldade era o impacto que cada detalhe me causou. Era tão distante da minha realidade que sua história parecia ficção.

- Sim Olívia, foi desta forma que parei aqui!

- Mas por que você não conta essa história para o mundo?

- Porque temo pelo restante da minha família que ficou.

 

Joaquim era um jovem nascido numa família de curandeiros em Luanda. A comunidade a qual pertencia era bastante desprovida de bens materiais e sobreviviam de doações em troca de benzeções e conselhos sábios sobre ervas e chás. Segundo ele, muitos os confundiam com bruxos e inventavam histórias a respeito da comunidade e de seus familiares.

- Lá na minha terra eles são muito supersticiosos e qualquer coisa que aconteça a uma família as pessoas procuram os curandeiros para proteção. Se você tem um gato preto em casa, os vizinhos já começam a lhe vigiar. Aí se alguém perde o emprego ou alguém da família morre, já dizem que você fez feitiçaria. É muito sério isso e o governo fecha os olhos para essas brigas entre as pessoas por razões religiosas. E, na maioria das vezes, as discussões acabam em tragédia.

Pausa na nossa conversa. Já passava muito do meu horário de trabalho e precisava voltar pra casa. Queria continuar escutando, afinal eu não sabia quando ele iria voltar. Talvez no mês seguinte e com muita sorte eu conseguiria saber o final da história. Despedi-me dele.  Disse que estaria seguro agora e começaria logo uma vida nova. Queria lhe dar alguma esperança, logo falei da possibilidade de estudos e de trabalho. Vi que seus olhos brilharam um pouco mais. Deixei Joaquim ali junto aos assistentes, que deram continuidade ao seu atendimento. Meu trajeto até em casa foi feito de modo automático. A cabeça não parava de pensar naquelas histórias absurdas que Joaquim havia me revelado naquela tarde. Procurei logo na internet sobre bruxarias em Angola. Li sobre pesquisas acadêmicas e notícias de jornal. Uma das reportagens dizia que, por mês, dezenas de crianças eram abandonadas nas ruas de Luanda porque os pais diziam que eram amaldiçoadas. Existia realmente um grande problema social impulsionado pelo radicalismo de crenças. ONGs trabalhavam para diminuir o impacto do abandono, mas dependiam de políticas públicas eficientes. Olhar para outro país e julgar o que aquela sociedade compreende como verdade não é um exercício simples. Culturas completamente diferentes, outros contextos sociais. Aquilo me incomodou muito. No entanto, o abandono, a falta de amor, a discriminação, os direitos humanos violados, são motivos suficientes para o mundo se mexer. Para outros países interferirem e pressionarem os governos locais por providencias!

Duas semanas se passaram. Lá estava ele sentado me esperando chegar. Queria trocar umas palavrinhas comigo.

- Nossa que bom lhe ver Joaquim! Você está bonito e alegre!

- Estou mesmo Olívia! Consegui um trabalho voluntário. Assim vou esfriando minha cabeça, parando de pensar na minha vida anterior e tudo que vivi nesses últimos anos. Você viu minha blusa nova que linda?

- Adoro essa cor! Ficou muito bem em você!

- Com o auxílio do governo estou conseguindo me alimentar e comprar roupas em brechós. Nunca tive uma blusa como essa. Eu me lembro que quando era garoto ganhei um short de doação. Eu me senti a pessoa mais especial desse mundo. Fiquei numa alegria, mostrava pra todo mundo. “Olha só o que ganhei, olha como sou importante!”  Nunca tive roupas legais...

 Segurei o choro imaginando o menino descalço passando pelas ruas sem asfalto, gritando de alegria e chamando a atenção dos vizinhos para aquela novidade. Doeu meu coração. Afinal eu sempre tive tanta roupa, tantas oportunidades. Mundo desigual!

- Então, Olívia, hoje queria lhe contar o restante da história. Acho que um dia você vai poder escrever sobre isso. Quando te vi me pareceu tão sensível e inteligente. Com sua escrita, mesmo que tardiamente, talvez as pessoas possam olhar para Luanda e socorrer outras famílias, crianças inocentes.

- Vou tentar publicar Joaquim. As pessoas especulam muito, mas elas fazem muito pouco, na maioria das vezes. Por outro lado, quem sabe a minha história chega nos ouvidos de algum figurão da ONU?

Sorri meio sem graça. Não acreditava na minha força, nem no meu texto. Mas precisava consolar o coração do Joaquim de alguma forma. Na cabeça dele seu sentimento de impotência era tão grande que qualquer pessoa faria mais por sua família que ele.

- Pois é, Olívia. Sabe, minha mãe começou a sofrer de demência. No início se esquecia das coisas e depois da gente. Ela começou a ter sonambulismo e, por diversas vezes, meu pai a buscou no quintal, sozinha perambulando à noite. Era muito triste vê-la daquele jeito. Como éramos de uma família de curandeiros, muitos da vizinhança inventavam histórias sobre a gente. Um dia minha mãe saiu nua de casa e meu pai não viu logo. Isso gerou muitos comentários. Disseram que minha mãe estava voando numa vassoura. Assim nos perseguiram e mataram meus pais.

Uma pausa. Os olhos dele brilharam. Dessa vez eram as lágrimas de tristeza. Engoli seco. Queria gritar, dizer “que absurdo, que povo louco, que mentira”. Qualquer coisa que eu dissesse seria inútil. A tragédia já tinha acontecido, o coração do Joaquim já estava despedaçado, tudo aquilo que lhe dava alegria tinha sido destruído. Ele sabia muito mais que eu a respeito de impunidade. A única coisa que minha ignorância podia fazer era ouvir e prometer que escreveria sobre isso.

- E por que deixaram você escapar?

- Porque eu estava fora na hora e fugi. Pedi refúgio aqui, em outro país. No meu caso eles aceitam refugiados. Não volto mais, Olívia. Vou começar outra história aqui. Agora preciso ir. Talvez a gente não se encontre mais. Escreva viu?

- Vou escrever Joaquim. Boa sorte. Posso lhe dar um abraço? Brasileiro tem mania de abraço, me perdoe.

- Tudo bem! Obrigado por tudo.

Tudo? Até ontem não tinha feito nada sobre isso. Planejei buscar outras histórias, fazer um trabalho sobre isso, denunciar... O tempo passou. Mais de quatro anos. Cá estou escrevendo. Minha filha me chama lá fora agora.

- Mamãe venha me ajudar com esse dever. Está muito difícil hoje.

- Já vou Carolina!

- O que você está fazendo aí?

- Cumprindo uma promessa, Carol!

terça-feira, 12 de abril de 2022

Sobre o tempo das coisas


Uma árvore leva tempo pra ficar robusta, plena, de galhos e folhas. Feito qualquer ser vivo é gente com seu processo. Ora livres, com pés descalços pisoteando o chão.  Ora desejando ser árvore, parindo frutos, enraizando. 

Em qualquer caminho, pausa. Esperar com a calma de quem enrola o cigarro, acende, solta baforadas, pensa no dia. Depois olha pra cima, espreita a noite e conta estrelas. 

Paciência. Nada é certo, no entanto é preciso ir, mais que nunca. Respirar até o peito doer. Tomar café no coador de pano, compreender que a vida é um filtrar de reminiscências e de planos. A gente volta pra ir. 

É um querer e não querer. É preciso aguardar respostas, enfrentar o não e comemorar o sim. Esperar exige muita coragem.





terça-feira, 28 de abril de 2020



Bolo de Laranja pra Iaiá


O dia caminha lindo, o ar fresco e o céu azul. Olho para o calendário e vejo que é 28. Não é outubro, mas era dia de uma desculpa para lhe ver. Tomar café com as gostosuras que fazia para servir depois da missa de São Judas Tadeu, seu santo de devoção. A tarde passa. Continuo fazendo minhas coisas, mas permanece o desejo de voltar no tempo, de sentir os cheiros da sua cozinha, o calor do seu afago. Um suspiro e me levanto da cadeira. Começo minha homenagem. Ligo o forno, num calor médio, para assar bolos em geral. Parto uma laranja ao meio, depois reparto, tiro caroços e um pouco da casca. Mas deixo algumas. Jogo no copo do liquidificador, acrescento três ovos inteiros, meia xícara de óleo, mais uma de açúcar, bato tudo. Vou acrescentando a farinha de trigo aos poucos até o aparelho não conseguir mais bater. É o ponto. Misturo uma colher de sopa de fermento em pó manualmente. Unto a forma, despejo e espero 30 minutos. Enquanto assa preparo uma calda rala com quatro colheres de açúcar e duas laranjas espremidas. Vinte minutos o aroma invade a casa, sinto um abraço com cheirinho de laranja. Fica clara a sua presença. É preciso um café forte pra acompanhar. Quase posso ouvir a voz rouca perguntando se ficou bom, “come mais, coloca manteiga”. O bolo ainda quentinho, faço furos com o garfo, derramo a calda e peneiro um pouco de açúcar de confeiteiro. Lembro dos detalhes, pois assim há mais tempo de você ficar aqui, me espiando, conferindo se estou indo bem. O primeiro pedaço derrete na boca, um finalzinho bem adocicado, fecho os olhos rapidinho, é pra ninguém ver que estou rezando. Uma oração pra você, por nós.

sábado, 28 de maio de 2016

A mulher que queria brilhar







Era assim todos os dias. Luísa botava o lixo pra fora, arrumava o café da manhã, chamava os filhos, levava para a escola, ia para o trabalho, encontrava o marido, buscavam os filhos, arrumava a casa, fazia a janta, olhava o para casa dos filhos, botava os filhos pra dormir, assistia minutos de TV e ia pra cama. Era uma rotina, no entanto nas rotinas cabem felicidade, horas de alegria e satisfação pessoal. Nada disso era problema pra ela. Gostava daquela vida, do casamento dos filhos do marido da casa de tudo. Também se divertia no trabalho, tinha muitos amigos, muitos eventos. Isso era motivo de sair um pouco do feijão com arroz, tão natural e necessário. Mas tinha um segredo enorme que Luísa guardava à sete chaves. Ela queria brilhar. Era um negócio esquisito essa ideia que passava horas assombrando seus pensamentos. Como alguém que tinha tudo maravilhoso sentia um buraco , um vazio, um desejo louco de brilhar. Um dia começou a falar disso com uma amiga, a qual dividia suas intimidades. Daí foi logo interpelada. “Como assim Luísa, que loucura é essa? Tá querendo ser atriz, se apresentar em público. Isso é algo do seu ego. Você tem necessidade de aparecer de ser o centro das atenções. Cuida disso menina, pode avacalhar sua vida esse negócio todo”. Luísa se encolheu novamente e botou pra dentro a caixinha com o danado do querer. Sonhou com aquilo durante noites e noites. O sentimento foi crescendo, sem formato, apenas a vontade de explodir o que nem ela mesma sabia onde ficava o pavio pra acender. Uma espécie de Alien que comandava sua inteligência em momentos de descuido. Quando se distraia dos afazeres, do racional, lá vinha a coisa tomando conta de tudo. Mas ela conseguia guardar. Dobrava vagarosamente todas as partes do desejo e repetia como um mantra que aquilo tudo era pra depois. “Tenho que esperar a hora certa.” E Luísa vivia todos os seus dias dobrando, chuchando, enxotando a coisa pra dentro do quadradinho. Um dia, um daqueles com chuva e feriado sem nada pra fazer, Luísa começou a bater um papo com os filhos e um deles contou sobre uma ideia genial de fazer um concurso de redações pra “colocar os meninos preguiçosos da escola pra pensar”. Ela sentiu um orgulho danado do filho, tão novo e já se preocupando com projetos para um bem comum. Ela se sentou com eles e escreveram ali mesmo um projeto. Na segunda-feira o filho saiu contente da vida e entregou para a professora. O dia mal acabou e Luísa foi chamada as pressas na escola dos filhos. A diretora queria parabenizar o trabalho e dar início ao projeto com a ajuda dela. Voltou pra casa cheia de alegria e não se preocupou em dobrar os fios soltos do brilho. E no caminho de volta pra casa ia falando com os filhos e só aumentava a vontade de que tudo aquilo desse certo . E lá se iam mais fios do brilho desenrolando. Chegou em casa pronta pra contar tudo ao marido e se reprogramar para que aquela atividade participasse da sua vida. Mas antes de abrir a boca o marido lhe deu a triste notícia de sua demissão. De uma hora pra outra a empresa resolveu cortar gastos e ele como um funcionário antigo era um custo alto naquele momento. Luísa reuniu todas as forças para consolá-lo e se reorganizarem com os gastos até que ele encontrasse um novo trabalho. Usou todas as energias para levantar a autoestima do companheiro e não deixar que os ânimos ali desmoronassem. Dobrou o brilho naquele momento, guardou tudo de novo. Chamou os filhos e teve uma longa conversa sobre gastos, vida apertada e trabalho em equipe. Sobre o projeto. Ah seria complicado pensar naquilo agora. Passaria as diretrizes para a escola e tudo seria lindo. Mas agora era hora de esperar as coisas voltarem ao normal...  

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Sobre quem se vai antes de ir

Há dias em que me bate uma saudade de pessoas que ainda estão aqui, mas já não são as mesmas de antes. Cheio de significados isso que disse? Então melhor explicar com exemplos. Sinto uma falta das crianças as quais me apeguei quando bebês ou bem pequenas. Elas cresceram. Hoje são homens e mulheres que amo muito também, mas aquelas crianças se foram. É estranho porque estão vivas, cheias de histórias, pessoas incríveis, mas as vezes queria brincar mais uma vez com aquelas crianças. Sei que se transformaram,se foram aos poucos e, na maioria das vezes, trouxeram pouca coisa da infância. Certo que ganharam outras tantas características que encantam a gente também. Mas a criança, aquela criança...

Foto: Henrique Rocha
Um sentimento parecido é o que acontece em relação a minha avó. Chega a dar um nó na garganta quando vem o pensamento de que Ela está indo aos poucos. Está viva, cheia de saúde, mas Ela mesma não está mais ali pra discordar das minhas petulâncias, pra brigar por pouco, pra cuidar da gente com seus carinhos vindos da cozinha. E quando quero reviver nossos momentos juntas passo um café, faço um pão, ouço uma música. Pois Ela permanece no cheiro do café, do pão de queijo no forno e do pão com coco. Ah que pão! Saudade do bom dia com tantas perguntas e dos casos de família. Dos telefonemas durante a semana cobrando minha presença, disputando minha atenção.Certo que minha vó, assim como as crianças, ganhou outros atributos.

Então fico aqui matutando, meio saudosa meio feliz. As pessoas se vão aos poucos, mesmo antes de ir.Estamos indo, seguindo intuições, fazendo escolhas e talvez um tanto ou um pouco da gente vai ficando no caminho. Alguma coisa da gente deve estar grudado nas paredes de uma casa, no livro que alguém escreveu, na carta que alguém guardou, na marca de batom em algum copo. A vida é mesmo um ir e vir. Vamos perdendo, acabando. Mas também ganhando. Só mesmo a saudade, essa palavra difícil de traduzir para outros idiomas, é que acumula. Se enche com as lembranças de crianças, de adolescentes, de adultos e de velhos que amamos.