segunda-feira, 25 de junho de 2012


Dos armários

Era final de expediente. O calor incomodava Ana apesar das parafernálias de ar condicionado, persianas inteligentes. Seria outro dia comum, não fosse sua necessidade repentina de abrir o armário. Ela não viu função para aquela bobagem de abrir um armário sem motivo algum. Quando o abria era para organizar os livros de um lado, as revistas de outro, os filmes daquele. Gostava de verificar a utilidade dos materiais, como se tornariam projetos ou novas ideias. Arquivo era tratado como coisa viva. Estava ali pra ser folheado. Pra indicar como proceder ou simplesmente não fazer. Tudo tinha um porquê. Mas agora não existia um motivo para levantar e puxar suas portas. Era hora de deixar o armário.

Daquele dia em diante aquele objeto quadrado tinha se transformado em armário. Peça de escritório. Quem olharia pra ele? Bom, as pessoas que gostam de armário, ela pensou. Ou quem percebesse que estava sujo, talvez. E as coisas, o monte de trem, a bagunça? É verdade. Estavam todos na posição da última mexida. Mas agora sem alma. Era mesmo gente que faltaria. Ana entendeu que mesmo que outras pessoas lhe dessem “vida”, nunca mais os objetos teriam o mesmo sentido.

E ela pensou que muitos armários viviam constantemente sem alma. Era desesperador. Pegou um dos trabalhos empilhados. Lembrou-se das horas empenhadas, stress, dor de barriga, náuseas, insônias e por fim o mérito. Teve a sensação que o papel esquentava na sua mão. Como se tivesse sangue circulando rapidamente nas páginas. Voltou com eles para o armário ajeitando-os como filhote no ninho. Como ficariam os projetos famintos? Quem os alimentaria? Ela dava comida, mesmo quando a dificuldade era grande. E agora?

Lembrou-se de uma velha amiga que lhe dizia sempre: “Ninguém é insubstituível”. A recordação lhe trouxe certo conforto. Em todo tempo é tempo de outras pessoas, de novos olhares, de outras dedicações. Fechou as portas daquele armário e com carinho deixou suas chaves à vista. Quem sabe a novidade seria mais rápida do ela estava imaginando...