Dos armários
Era final de expediente. O calor incomodava Ana apesar das
parafernálias de ar condicionado, persianas inteligentes. Seria outro dia comum,
não fosse sua necessidade repentina de abrir o armário. Ela não viu função para
aquela bobagem de abrir um armário sem motivo algum. Quando o abria era para organizar
os livros de um lado, as revistas de outro, os filmes daquele. Gostava de
verificar a utilidade dos materiais, como se tornariam projetos ou novas
ideias. Arquivo era tratado como coisa viva. Estava ali pra ser folheado. Pra
indicar como proceder ou simplesmente não fazer. Tudo tinha um porquê. Mas
agora não existia um motivo para levantar e puxar suas portas. Era hora de
deixar o armário.
Daquele dia em diante aquele objeto quadrado tinha se
transformado em armário. Peça de escritório. Quem olharia pra ele? Bom, as
pessoas que gostam de armário, ela pensou. Ou quem percebesse que estava sujo,
talvez. E as coisas, o monte de trem, a bagunça? É verdade. Estavam todos na
posição da última mexida. Mas agora sem alma. Era mesmo gente que faltaria. Ana
entendeu que mesmo que outras pessoas lhe dessem “vida”, nunca mais os objetos
teriam o mesmo sentido.
E ela pensou que muitos armários viviam constantemente sem
alma. Era desesperador. Pegou um dos trabalhos empilhados. Lembrou-se das horas
empenhadas, stress, dor de barriga, náuseas, insônias e por fim o mérito. Teve
a sensação que o papel esquentava na sua mão. Como se tivesse sangue circulando
rapidamente nas páginas. Voltou com eles para o armário ajeitando-os como
filhote no ninho. Como ficariam os projetos famintos? Quem os alimentaria? Ela
dava comida, mesmo quando a dificuldade era grande. E agora?
Lembrou-se de uma velha amiga que lhe dizia sempre: “Ninguém
é insubstituível”. A recordação lhe trouxe certo conforto. Em todo tempo é
tempo de outras pessoas, de novos olhares, de outras dedicações. Fechou as
portas daquele armário e com carinho deixou suas chaves à vista. Quem sabe a
novidade seria mais rápida do ela estava imaginando...