terça-feira, 5 de agosto de 2014

Verbo intransigente



Desfalar: palavra inexistente; modo popular de classificar o ato “involuntário” de muitos, inclusive políticos, de dizer uma determinada coisa e não admitir que disse; prometer e não cumprir; contradizer-se; escorregar  feito quiabo; mudar de opinião e não assumir; ato de dizer que não falou.

Estava pensando nesta mania que algumas pessoas têm de dizer que não falou determinada coisa, ideia, opinião, baboseira ou promessa. Por causa disso, em muitas ocasiões briguei, gritei, argumentei, falei mais alto, lutando e relutando com o tal desfalar. Torturava-me assistir aos programas políticos, onde candidatos usavam os exemplos da má administração da oposição para concluir que era hora de mudar. Votar em alguém que faria algo melhor. Mas passado o tempo da caça, os matadores se arrebanhavam num só grupo, dizendo-se mais fortes com o apoio dos adversários. Política das alianças, libertadora das ofensas e das maledicências, legitimadora do desfalar, pois não importa o que foi dito. “Na política, adversários; na administração, companheiros”.

E o povo cada vez mais sem entender. As palavras dos discursos se perdendo com o tempo, pois não há ação correspondente. Falar é uma coisa. Agir é outra. Hoje eu discurso e amanhã a gente discute! Depois dos resultados das urnas ninguém se recorda mais dos ataques. Agora já se lambem e se orgulham das crias, dos projetos inovadores fundados à base da unidade. Que seja feita a tua vontade!

E todos os anos eleitorais, o desfalar se repete, sendo parte integrante do elenco.
E o povo às oito e meia da noite a assistir, um homem falando...

Eleição me faz lembrar bastante do meu avô Geraldo. Homem que gostava de anotar todas as nossas “grandes falas”. Era alguém teimar e lá ia ele buscar seu caderninho meio ofício, com aspirais, pauta colegial e folhas amareladas.
 E de tempos em tempos, para ninguém se esquecer do que foi dito, vinha ele arrastando o chinelinho com a prova na mão. “Isso aqui, minha filha, é pra provar que foi fulano quem disse. Não gosto de mentiras. Olha aqui o que ele disse! Tem a data. Sempre escrevo embaixo foi fulano quem disse isso”.

Meu sábio avô. Sempre acreditando na legitimidade do seu caderninho...

Enquanto isso, a muitos quilômetros de sua terra natal, nada mudou. Políticos ainda continuam desfalando e, por vezes, se ferrando no país da grampolândia!  

sábado, 15 de março de 2014

Tem alguém dentro de mim


- Mãe, tem uma coisa me incomodando! Acordei com essa coisa, passei o dia e ela continua aqui. Quando chegou à noite achei que estaria livre. Mas nada! A coisa tá juntinho, não sai nem por reza brava.

             Calmamente Cristina fala ao telefone com a filha.

- Querida me diga os sintomas com riqueza de detalhe. É possível que mesmo de longe eu consiga lhe diagnosticar. Ou ao menos indicar um especialista para seu caso.
- Mãe, não consigo essa riqueza de detalhes (agora com a voz bastante irritada). O que eu poço lhe explicar é a sensação que tem alguém dentro de mim fazendo coisas que eu não quero. Por exemplo, eu amanheci com vontade de comer ovos mexidos com abacate. Eu odeio isso! E fui lá e comi uma pratada. Agora estou arrepiando só de pensar no que comi. Para aliviar pensei em ver um pouco de TV e me distrair. Foi pior. Eu parei em todos os canais de yoga, de meditação, de Lama sei lá o quê. Nunca vi nada disso na minha vida. Tenho uma antipatia tremenda com isso e estava lá hoje vendo tudo com muita curiosidade. Tem alguém dentro de mim! Eu sei. Vem aqui, pega um avião. Preciso de você aqui mãeeee.
- Filha mantenha a calma. Respira. Estou no meio de um plantão! Assim que conseguir uma folga vou pra São Paulo ficar uns dias com você. Mas vai ter que aguentar até o final dessa semana, tudo bem?
- Aí vai saber se até lá essa coisa já tomou conta de mim! Só espero que quando você chegar eu já não esteja morta!
- Julia, filha, pare com os exageros. Tome um suco de maracujá, você vai se sentir bem.
- Lá vem você com essas coisas naturebas. Odeio isso! Julia toma chá disso. Julia toma chá daquilo. Filha respira antes de falar. Mãe dá pra me ajudar mais ao invés de ficar receitando essas idiotices? Tenho até vergonha de falar que você é medica para minhas amigas. Parece mais uma raizeira. Ai ai ai (suspirou agora com a última gota de paciência).
- Querida não posso mais falar com você. Estão me chamando para um atendimento de urgência. Estarei aí em poucos dias e veremos quem é essa outra pessoa. Prometo que vou expulsá-la desse corpo que não a pertence. Mas por enquanto tente fazer coisas das quais gosta. Procure seus amigos e saia mais. Não fica com o pensamento fixo nessa outra pessoa. Vai deixando o dia correr normal. Quem sabe ela desiste de você?
- Ou eu desisto de mim né mãe? Tô te falando que o negócio tá feio. Porque você não fez xamanismo? Medicina não combina com você definitivamente. Mas tudo bem. Aguardo sua vinda...
- Julia sem agressões querida. Beijo. Te amo.
- Também. Apesar de não vir hoje...

A semana passou e Cristina não recebeu outro telefonema da filha. Preocupada com o silêncio de Julia, que costumava fazer escândalo com tudo e colocar a mãe como babá, a mãe resolveu ligar antes de comprar passagem. Até porque era um momento delicado no hospital com a mudança do novo diretor e ela precisava ficar mais presente.

- Alô, quem está falando?
- Ei mãe é a Julia. Não conhece mais a voz da sua filha?
- Nossa, mas está tão calma que cheguei a pensar que era uma amiga sua.
Risos.
- Está tudo bem querida?
- Ótimo! Decidi não brigar mais com aquele encosto e ele sumiu. Incrível mãe! O negócio que eu estava sentindo, aquela coisa comandando tudo lembra? Desapareceu. Acredita?
- Sim acredito. Está tudo bem mesmo então? Não quer que eu vá para São Paulo?
- Que isso mãe! De forma alguma. Sei que o hospital está confuso e você precisa ficar aí. Estou outra pessoa! Pode ficar despreocupada.
- Outra pessoa?
- É mais leve sabe... Aquela coisa de felicidade. Nada me incomodando.
- Sei. Fala mais sobre isso.
- Mãe desculpa. Agora não posso. Tem um programa do Dalai Lama aqui, entrevista exclusiva para falar sobre uma viagem para o Tibet. Tem uns amigos aqui em casa e a gente combinou de ver juntos. E depois meditar e coisa e tal.
- Entendi Julia.
- Falamos depois mãe?
- Sim querida. Falamos mais tarde.
- Tudo bem mãe. Um beijo.
- Outro.

        Cristina desligou o telefone com a impressão de que não tinha entendido nada. Ficou mais preocupada. Resolveu comprar a passagem. Essa coisa de felicidade era bem confusa. Julia precisava da sua ajuda, pensou.