terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Sobre quem se vai antes de ir

Há dias em que me bate uma saudade de pessoas que ainda estão aqui, mas já não são as mesmas de antes. Cheio de significados isso que disse? Então melhor explicar com exemplos. Sinto uma falta das crianças as quais me apeguei quando bebês ou bem pequenas. Elas cresceram. Hoje são homens e mulheres que amo muito também, mas aquelas crianças se foram. É estranho porque estão vivas, cheias de histórias, pessoas incríveis, mas as vezes queria brincar mais uma vez com aquelas crianças. Sei que se transformaram,se foram aos poucos e, na maioria das vezes, trouxeram pouca coisa da infância. Certo que ganharam outras tantas características que encantam a gente também. Mas a criança, aquela criança...

Foto: Henrique Rocha
Um sentimento parecido é o que acontece em relação a minha avó. Chega a dar um nó na garganta quando vem o pensamento de que Ela está indo aos poucos. Está viva, cheia de saúde, mas Ela mesma não está mais ali pra discordar das minhas petulâncias, pra brigar por pouco, pra cuidar da gente com seus carinhos vindos da cozinha. E quando quero reviver nossos momentos juntas passo um café, faço um pão, ouço uma música. Pois Ela permanece no cheiro do café, do pão de queijo no forno e do pão com coco. Ah que pão! Saudade do bom dia com tantas perguntas e dos casos de família. Dos telefonemas durante a semana cobrando minha presença, disputando minha atenção.Certo que minha vó, assim como as crianças, ganhou outros atributos.

Então fico aqui matutando, meio saudosa meio feliz. As pessoas se vão aos poucos, mesmo antes de ir.Estamos indo, seguindo intuições, fazendo escolhas e talvez um tanto ou um pouco da gente vai ficando no caminho. Alguma coisa da gente deve estar grudado nas paredes de uma casa, no livro que alguém escreveu, na carta que alguém guardou, na marca de batom em algum copo. A vida é mesmo um ir e vir. Vamos perdendo, acabando. Mas também ganhando. Só mesmo a saudade, essa palavra difícil de traduzir para outros idiomas, é que acumula. Se enche com as lembranças de crianças, de adolescentes, de adultos e de velhos que amamos.


quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Um caminho

Era um dia como outro qualquer. Ana Maria seguia seu caminho de sempre. Por não encontrar novidades, quis arriscar um atalho. E foi então que naquele momento tudo se transformou. Ela experimentou algo que lhe fez mudar suas expectativas em relação à vida. Que por sinal andava muito parada. Sem grandes entusiasmos. Nem amigos nem namorado nem propostas de trabalho. Foi então que naquele beco sujo e fedorento ela teve a primeira das sensações. Sentiu um cheiro de mijo antigo, que lhe deu vontade de botar pra fora todo seu café da manhã. O odor queimava suas narinas e ela mal podia prestar atenção às pessoas que passavam ao seu redor. Estava ligeiramente tonta. Tentou se apoiar na parede. E ia desistir daquele caminho quando bateu uma leve brisa que lhe trouxe um cheiro de sonho dourado. Do bolinho mesmo. Com recheio de doce de leite e casquinha crocante. Aquilo a fez pensar o quanto o mundo era mais feliz por causa dos livros de receita. Ah como daria tudo para ter o antigo caderno de receitas da sua mãe. Perdera em algum lugar da casa, do passado, das paredes descascadas. Ela já não se recordava das medidas para tornar um sonho em realidade. Achou melhor caminhar ao invés de pensar naquilo. Inesperadamente o céu escureceu. Não havia previsão de chuva, mas tudo ficou bastante fechado. Pensou que não era seu dia de sorte, pois não havia levado guarda chuva. Sua roupa era clara, o que lhe deixaria muito constrangida se molhasse. Pensou em voltar à casa. Mas quem sabe poderia esconder-se debaixo de alguma marquise e aguardar a tempestade. Acatou a ideia e se protegeu. Depois de um tempo ali, esperando tudo acalmar, notou uma fisgada na barriga. Uma pontinha de dor causada pelo cheiro do feijão que vinha da cozinha próxima ao local onde estava. "Que diabo de restaurante! Precisam começar a refogar o alho e a estalar os feijões na gordura logo tão cedo!" Sua boca enchia de saliva e seus olhos quase podiam enxergar a cozinha da sua avó Dinda. Voltou ao tempo em que havia gente perto dela, que a casa era cheia de causos e de discussões acaloradas. Mas não se importou em recordar das brigas. Era preciso trazer gente para sua vida, mesmo que fossem apenas lembranças. Cheiro de feijão era o cheiro de casa que funcionava. Que tinha de tudo muito ou pouco: amor, raiva, magoas, tinha gente. A chuva parou. Seu coração sentiu que teria que tomar coragem e seguir em frente. Era um caminho novo e talvez isso a deixasse mais vulnerável em relação à pontualidade no trabalho. Era preciso voltar a caminhar, um pouco mais rápido agora. Seguia com os passos firmes e decididos quando um pipoqueiro arrasou com seu plano de concentração. Era com manteiga! Irresistível cheiro de parque e de roda gigante. De novo regressou à vida em que levava no interior com seus pais. Onde sua única preocupação era escrever seu nome completo na cartilha da escola. Nenhuma infância talvez fosse tão feliz sem esses dois ingredientes. Tudo que tinha festa tinha pipoca e tinha manteiga. Era isso. Tempo de ser feliz sem muita ansiedade. Tempo  de aproveitar sem muito se incomodar com futuros, sucessos e coisas da tal sociedade. Mais uma vez Ana Maria foi interrompida. Agora foi a vez da sirene do carro de polícia. Olhou o relógio. "Meu Deus, vou chegar muito atrasada!" Era preciso mais força para sair daquele pensamento, no entanto ela reagiu. Resistindo à tudo, seguiu correndo. Assim, quanto mais corria, mais os cheiros se misturavam e pode sentir de uma vez só vez o café, o frango assado, a carne cozida com pimentão, o churros com canela, a batata com manteiga. Aquela experiência num beco por qual decidira passar sem muita esperança. Seu coração batia tão forte que mal podia suportar acomodá-lo dentro do peito. Estava perto de cometer uma loucura. Aquelas brisas iam e vinham de todas as direções. Como num desenho animado pareciam fazer surgir uma mãozinha no meio da fumaça chamando em direção à origem de todo o banquete. Percebeu que estava com muita fome. E aquele sentimento ia crescendo como uma massa de pão. E ia borbulhando de forma que não suportou chegar ao trabalho. Neste momento, ali mesmo de onde estava, voltou. Decidiu se aproximar do seu portão e do sentimento de reencontro. Até que viu o que queria. Lá estava ela, em carne e osso e em pessoa. Ela mesma! De pé na beirada do fogão. Com o avental amarelado, os cabelos presos e um sorriso invejável. As lágrimas caiam-lhe pelo rosto. Quase não pode ouvir a porta bater. " Ana, você não foi trabalhar hoje?" "Oi, mamãe. Tinha um encontro muito especial com alguém que não via há anos.Você não acha que hoje está com jeito de chover o dia todo? A gente podia passar a tarde comendo sonhos e sendo feliz. Que acha?"