- Mãe, tem uma coisa me incomodando!
Acordei com essa coisa, passei o dia e ela continua aqui. Quando chegou à noite
achei que estaria livre. Mas nada! A coisa tá juntinho, não sai nem por reza
brava.
Calmamente Cristina fala ao telefone com a filha.
- Querida me diga os sintomas com
riqueza de detalhe. É possível que mesmo de longe eu consiga lhe diagnosticar.
Ou ao menos indicar um especialista para seu caso.
- Mãe, não consigo essa riqueza de
detalhes (agora com a voz bastante irritada). O que eu poço lhe explicar é a
sensação que tem alguém dentro de mim fazendo coisas que eu não quero. Por
exemplo, eu amanheci com vontade de comer ovos mexidos com abacate. Eu odeio
isso! E fui lá e comi uma pratada. Agora estou arrepiando só de pensar no que
comi. Para aliviar pensei em ver um pouco de TV e me distrair. Foi pior. Eu
parei em todos os canais de yoga, de meditação, de Lama sei lá o quê. Nunca vi
nada disso na minha vida. Tenho uma antipatia tremenda com isso e estava lá
hoje vendo tudo com muita curiosidade. Tem alguém dentro de mim! Eu sei. Vem
aqui, pega um avião. Preciso de você aqui mãeeee.
- Filha mantenha a calma. Respira.
Estou no meio de um plantão! Assim que conseguir uma folga vou pra São Paulo
ficar uns dias com você. Mas vai ter que aguentar até o final dessa semana,
tudo bem?
- Aí vai saber se até lá essa coisa
já tomou conta de mim! Só espero que quando você chegar eu já não esteja morta!
- Julia, filha, pare com os exageros.
Tome um suco de maracujá, você vai se sentir bem.
- Lá vem você com essas coisas
naturebas. Odeio isso! Julia toma chá disso. Julia toma chá daquilo. Filha
respira antes de falar. Mãe dá pra me ajudar mais ao invés de ficar receitando
essas idiotices? Tenho até vergonha de falar que você é medica para minhas
amigas. Parece mais uma raizeira. Ai ai ai (suspirou agora com a última gota de
paciência).
- Querida não posso mais falar com
você. Estão me chamando para um atendimento de urgência. Estarei aí em poucos
dias e veremos quem é essa outra pessoa. Prometo que vou expulsá-la desse corpo
que não a pertence. Mas por enquanto tente fazer coisas das quais gosta.
Procure seus amigos e saia mais. Não fica com o pensamento fixo nessa outra
pessoa. Vai deixando o dia correr normal. Quem sabe ela desiste de você?
- Ou eu desisto de mim né mãe? Tô te
falando que o negócio tá feio. Porque você não fez xamanismo? Medicina não
combina com você definitivamente. Mas tudo bem. Aguardo sua vinda...
- Julia sem agressões querida. Beijo.
Te amo.
- Também. Apesar de não vir hoje...
A semana passou e Cristina não
recebeu outro telefonema da filha. Preocupada com o silêncio de Julia, que
costumava fazer escândalo com tudo e colocar a mãe como babá, a mãe resolveu
ligar antes de comprar passagem. Até porque era um momento delicado no hospital
com a mudança do novo diretor e ela precisava ficar mais presente.
- Alô, quem está falando?
- Ei mãe é a Julia. Não conhece mais
a voz da sua filha?
- Nossa, mas está tão calma que
cheguei a pensar que era uma amiga sua.
Risos.
- Está tudo bem querida?
- Ótimo! Decidi não brigar mais com
aquele encosto e ele sumiu. Incrível mãe! O negócio que eu estava sentindo,
aquela coisa comandando tudo lembra? Desapareceu. Acredita?
- Sim acredito. Está tudo bem mesmo
então? Não quer que eu vá para São Paulo?
- Que isso mãe! De forma alguma. Sei
que o hospital está confuso e você precisa ficar aí. Estou outra pessoa! Pode
ficar despreocupada.
- Outra pessoa?
- É mais leve sabe... Aquela coisa de
felicidade. Nada me incomodando.
- Sei. Fala mais sobre isso.
- Mãe desculpa. Agora não posso. Tem
um programa do Dalai Lama aqui, entrevista exclusiva para falar sobre uma
viagem para o Tibet. Tem uns amigos aqui em casa e a gente combinou de ver
juntos. E depois meditar e coisa e tal.
- Entendi Julia.
- Falamos depois mãe?
- Sim querida. Falamos mais tarde.
- Tudo bem mãe. Um beijo.
- Outro.
Cristina desligou o telefone com a impressão de que não tinha
entendido nada. Ficou mais preocupada. Resolveu comprar a passagem. Essa coisa
de felicidade era bem confusa. Julia precisava da sua ajuda, pensou.
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