sábado, 15 de março de 2014

Tem alguém dentro de mim


- Mãe, tem uma coisa me incomodando! Acordei com essa coisa, passei o dia e ela continua aqui. Quando chegou à noite achei que estaria livre. Mas nada! A coisa tá juntinho, não sai nem por reza brava.

             Calmamente Cristina fala ao telefone com a filha.

- Querida me diga os sintomas com riqueza de detalhe. É possível que mesmo de longe eu consiga lhe diagnosticar. Ou ao menos indicar um especialista para seu caso.
- Mãe, não consigo essa riqueza de detalhes (agora com a voz bastante irritada). O que eu poço lhe explicar é a sensação que tem alguém dentro de mim fazendo coisas que eu não quero. Por exemplo, eu amanheci com vontade de comer ovos mexidos com abacate. Eu odeio isso! E fui lá e comi uma pratada. Agora estou arrepiando só de pensar no que comi. Para aliviar pensei em ver um pouco de TV e me distrair. Foi pior. Eu parei em todos os canais de yoga, de meditação, de Lama sei lá o quê. Nunca vi nada disso na minha vida. Tenho uma antipatia tremenda com isso e estava lá hoje vendo tudo com muita curiosidade. Tem alguém dentro de mim! Eu sei. Vem aqui, pega um avião. Preciso de você aqui mãeeee.
- Filha mantenha a calma. Respira. Estou no meio de um plantão! Assim que conseguir uma folga vou pra São Paulo ficar uns dias com você. Mas vai ter que aguentar até o final dessa semana, tudo bem?
- Aí vai saber se até lá essa coisa já tomou conta de mim! Só espero que quando você chegar eu já não esteja morta!
- Julia, filha, pare com os exageros. Tome um suco de maracujá, você vai se sentir bem.
- Lá vem você com essas coisas naturebas. Odeio isso! Julia toma chá disso. Julia toma chá daquilo. Filha respira antes de falar. Mãe dá pra me ajudar mais ao invés de ficar receitando essas idiotices? Tenho até vergonha de falar que você é medica para minhas amigas. Parece mais uma raizeira. Ai ai ai (suspirou agora com a última gota de paciência).
- Querida não posso mais falar com você. Estão me chamando para um atendimento de urgência. Estarei aí em poucos dias e veremos quem é essa outra pessoa. Prometo que vou expulsá-la desse corpo que não a pertence. Mas por enquanto tente fazer coisas das quais gosta. Procure seus amigos e saia mais. Não fica com o pensamento fixo nessa outra pessoa. Vai deixando o dia correr normal. Quem sabe ela desiste de você?
- Ou eu desisto de mim né mãe? Tô te falando que o negócio tá feio. Porque você não fez xamanismo? Medicina não combina com você definitivamente. Mas tudo bem. Aguardo sua vinda...
- Julia sem agressões querida. Beijo. Te amo.
- Também. Apesar de não vir hoje...

A semana passou e Cristina não recebeu outro telefonema da filha. Preocupada com o silêncio de Julia, que costumava fazer escândalo com tudo e colocar a mãe como babá, a mãe resolveu ligar antes de comprar passagem. Até porque era um momento delicado no hospital com a mudança do novo diretor e ela precisava ficar mais presente.

- Alô, quem está falando?
- Ei mãe é a Julia. Não conhece mais a voz da sua filha?
- Nossa, mas está tão calma que cheguei a pensar que era uma amiga sua.
Risos.
- Está tudo bem querida?
- Ótimo! Decidi não brigar mais com aquele encosto e ele sumiu. Incrível mãe! O negócio que eu estava sentindo, aquela coisa comandando tudo lembra? Desapareceu. Acredita?
- Sim acredito. Está tudo bem mesmo então? Não quer que eu vá para São Paulo?
- Que isso mãe! De forma alguma. Sei que o hospital está confuso e você precisa ficar aí. Estou outra pessoa! Pode ficar despreocupada.
- Outra pessoa?
- É mais leve sabe... Aquela coisa de felicidade. Nada me incomodando.
- Sei. Fala mais sobre isso.
- Mãe desculpa. Agora não posso. Tem um programa do Dalai Lama aqui, entrevista exclusiva para falar sobre uma viagem para o Tibet. Tem uns amigos aqui em casa e a gente combinou de ver juntos. E depois meditar e coisa e tal.
- Entendi Julia.
- Falamos depois mãe?
- Sim querida. Falamos mais tarde.
- Tudo bem mãe. Um beijo.
- Outro.

        Cristina desligou o telefone com a impressão de que não tinha entendido nada. Ficou mais preocupada. Resolveu comprar a passagem. Essa coisa de felicidade era bem confusa. Julia precisava da sua ajuda, pensou.

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